Unimepiano de psicologia desenvolve projeto com homens que praticaram violência contra mulheres
A violência cometida contra familiares e, principalmente, mulheres é fato comum, infelizmente, nos boletins de ocorrência das delegacias brasileiras. De acordo com dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quase 5 mil mulheres foram assassinadas no Brasil em 2017. Outra pesquisa, realizada em fevereiro de 2019 pelo Instituto Datafolha, mostrou que, nos 12 meses anteriores, 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento. Entre esses casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Para contribuir com a mudança desse cenário, o ex-aluno do curso de psicologia da Unimep, André Luiz D’Onofrio Caes (foto abaixo à direita), decidiu participar de projeto de iniciação científica ao longo da graduação, na área da psicologia social. O projeto culminou na criação do Grupo Reflexivo da Violência Intrafamiliar (Grevinfa), que reúne homens autores de violência intrafamiliar contra mulheres e auxilia na prevenção de novos casos.
André realizou a pesquisa entre agosto de 2017 e agosto de 2019, com a orientação da ex-docente do curso, Telma Regina de Paula Souza. Além dela, participou do projeto o prof. Fábio Henrique Ramos, que atuou como coordenador dos grupos reflexivos. Ambos os docentes não integram mais o quadro de professores da Unimep. Sobre o projeto e alguns dos principais resultados, André concedeu entrevista exclusiva ao Acontece Unimep. Confira os melhores trechos da entrevista.
Acontece Unimep – Qual o objetivo desse projeto de pesquisa?
André Luiz D’Onofrio Caes – Criar, estruturar e oferecer um serviço municipal, enquanto medida socioeducativa, para homens autores de violência contra a mulher. Esse objetivo existe na legislação, faz parte da Lei Maria da Penha (LMP), mas, apesar do crescimento dessas práticas em território nacional, ainda são poucos os estados e municípios que oferecem esse trabalho. O nome do projeto ressalta a violência intrafamiliar, pois as pesquisas mostram que a maior parte desse tipo de violência ocorre dentro da casa das vítimas e não afeta apenas as mulheres, mas todos os que estão em contato com a relação de abuso. A pesquisa tinha outros intuitos principais: sistematizar as atividades realizadas no Grupo Reflexivo e analisar se esse processo de trabalho realmente mobilizaria a reflexão dos participantes sobre a violência; caracterizar os padrões relacionais desses homens. Então, a partir dessa análise, perceber o impacto da participação dos homens nessa forma de estabelecer as relações interpessoais; e entender os alcances e limites dessa medida socioeducativa como estratégia para enfrentar os altos índices de violência contra a mulher. É importante mencionar que a pesquisa e esse trabalho com grupos reflexivos estão sendo continuados por outro aluno, que assumiu a função de pesquisador. Eu ainda faço parte, mas agora assumirei o cargo de facilitador no lugar do prof. Fábio.
Acontece Unimep – Como o projeto foi desenvolvido?
André – Temos eixos norteadores que podem ser considerados universais e são, principalmente, relacionados à discussão sobre gênero, sobre o que são esse e outros tipos violência e sobre discutir e criar com os participantes outros recursos para resolução dos conflitos, como o diálogo. A metodologia levou em consideração análise e compreensão dos processos históricos e culturais, como a violência, que foi o do materialismo histórico e dialético. Essa forma de leitura da realidade entende que a história é construída a várias mãos, que somos todos agentes históricos e nossas ações transformam nossas relações, a sociedade, a cultura, a natureza e, da mesma maneira, nos transformam nesse processo. Somos sujeitos a essa história e a essas mesmas relações que objetivamos transformar. Isto posto, compreendemos que, por sermos dependentes de outros seres humanos para nos tornarmos humanos, toda e qualquer ação transformadora da sociedade, da realidade, ocorre em ações coletivas, onde vários sujeitos agem em função de um objetivo comum. Os recursos que temos para lidar com essa realidade também são determinados por essas condições, pelas histórias de vida dos sujeitos e, por isso, nossa perspectiva é de que a violência é construída nas relações e tornada natural ao longo desse percurso. Como os grupos reflexivos também são agrupamentos de sujeitos, são instrumento de ação que permite saber como esses homens se tornaram quem são e agiram como agiram. Entendemos que os temas e atividades que poderíamos propor teriam que ter direta relação com o que esses homens traziam em suas falas. Isso fez com que não existisse uma metodologia rígida, pois o processo grupal é muito particular e cada grupo é diferente do outro. O aspecto mais procedimental da metodologia, no entanto, foi baseado na literatura que encontramos sobre trabalhos com essa medida.
De maneira geral, esses trabalhos estipulam 15 a 20 encontros e uma média de 15 a 20 participantes por grupos. Esses encontros ocorrem com frequência semanal, com duração de 2 horas. Após os encontros, realizei diários de campo, ou seja, documentei as falas, os temas surgidos, as questões e percepções que tive. Foi a partir desse material que foi realizada a análise e se pudemos responder aos objetivos do trabalho.
Acontece Unimep – Quais foram os desafios enfrentados para realizar o projeto?
André – O objetivo maior do projeto ainda não foi realizado. Nesse percurso criamos uma equipe de trabalho que é constituída em parceria com o Ministério Público, a OAB e a Defensoria Pública do município. Fora a bolsa de pesquisa, os recursos disponíveis não são suficientes para a criação de um serviço público, então trabalhamos de maneira voluntária. Citei a importância do prof. Fábio justamente por isso, pois ele ofereceu sua força de trabalho e sua competência de bom grado por todo esse período e, agora que estou formado, vou fazer o mesmo. Apesar disso, a equipe continua fazendo articulações para que isso se torne realmente um recurso de qualidade oferecido pela cidade. Outro entrave é o da adesão e participação dos homens nos grupos. Pincelei alguns detalhes, mas toda a literatura indica o sentimento de injustiça dos homens quanto à participação nessa medida socioeducativa. Isso se dá porque existe dificuldade de reconhecimento das ações dentro das relações enquanto violentas. Por esse motivo mencionei a importância da cultura. Isso indica clara resistência da sociedade em reconhecer a gravidade e seriedade desse fenômeno, mesmo após vários anos da instituição da Lei Maria da Penha. E não só na sociedade civil, pois a discussão do tratamento jurídico a esse tipo de violência também reflete essa desigualdade. Antes da LMP, os casos de violência contra a mulher eram tratados por Juizados Especiais Criminais como crimes de menor potencial ofensivo.
Acontece Unimep - Foi difícil manter a neutralidade de pesquisador ao trabalhar com pessoas que cometeram crimes tão repudiados socialmente?
André - A ideia de neutralidade é bastante complexa, senão um tanto ideal, principalmente em relação a fenômenos humanos. A função de pesquisador requer objetividade, mas isso não significa que estamos imunes ao fenômeno que buscamos observar e analisar. É necessário distanciamento e isso não é tarefa simples. Como mencionei, somos todos constituídos dentro de uma sociedade, de uma cultura, enfim, fazemos parte e nossas motivações e interesses também deve ser levado em conta. Por isso, a postura de pesquisador-participante consiste em olhar tanto nossa própria história como aquilo que efetivamente testemunhamos. Todos temos alguma opinião formada sobre as coisas, sejam elas quais forem e com a violência não é diferente. Mas, no caso desse modo de pesquisar, agimos sobre o fenômeno que analisamos, ou seja, buscamos construir conjuntamente com os participantes da pesquisa, novos olhares, ressignificações sobre aquelas formas de ser e viver em sociedade. Na análise, tive o cuidado de problematizar meu próprio histórico e a natureza minhas intervenções dentro do grupo, pois venho de uma história de vida onde, muito cedo, tive exposição direta a situações de violência contra a mulher e isso é uma das coisas que me levou a questionar a condição do ser homem e me interessar por essa pesquisa e trabalho. De toda forma, essa maneira de pesquisar, em minha opinião é extremamente importante tanto para o pesquisador quanto para as pessoas com quem ele intervém, tidos esses cuidados. Afinal, a história que contamos sobre nós mesmos e o que somos, nossa identidade, se altera conforme agimos no mundo e isso pode ser muito positivo.
Acontece Unimep – Vocês observaram melhoras no comportamento desses homens ao longo do projeto?
André - Sim. Essa é uma questão delicada, por isso existem problematizações sobre os efeitos dos grupos reflexivos quanto às metodologias e seus resultados. É necessário se ter cuidado para que os grupos não sejam verticais, no sentido de passar um conteúdo que pode não ter sentido para os homens que participam do trabalho, a não ser de ajustamento superficial às normas da sociedade. É preciso que as discussões toquem esses homens em nível mais profundo, para que eles possam identificar em suas vidas as situações que os fizeram ter essa ou aquela forma de pensar, agir e sentir. Sinto que isso torna a proposta mais difícil, porque é preciso dar abertura para que esses homens expressem tudo o que sentem e pensam sobre essas questões. Exposições de raiva, indignação e, principalmente, de sofrimento, são muito constantes nesse trabalho. E é preciso acolhê-las, compreender de onde elas vêm, como foram construídas e daí intervir. De modo geral e franco, acredito que os grupos são espaço muito potente, mas têm limites. O que acredito ser a principal eficácia desse trabalho é que ele tem a capacidade de iniciar esse processo reflexivo, de conscientização e de ressignificação. Dou ênfase à palavra iniciar, pois não existem soluções mágicas e colocar em questão crenças e formas de ver a realidade construídas, em tantos anos de vida, não acontece espontaneamente. Leva tempo, disposição e não vem sem uma boa dose de sofrimento. Toda mudança, por mais que reconheçamos que seja boa e benéfica, requer que deixemos algo para trás, e o preço que pagamos nesse caminho, só nós sabemos qual é.
Acontece Unimep – A partir de sua pesquisa, o que leva esses homens a cometerem violência intrafamiliar?
André - De modo geral e com a ressalva de que o ideal seria análise caso-a-caso, temos uma imagem social sobre o que o homem representa. Essa imagem está na história de nossa cultura. Um homem viril, invulnerável, sedutor e dominador, trabalhador que se sobressai aos outros, bem-sucedido na vida financeira e sexual, que provê para sua família e que disciplina. Esse ser é um dos fantasmas que rondam o ser homem em nossa cultura, mas é um ser impossível. Ele se torna um objetivo a ser alcançado, por mais irreal que seja. Quando os papéis sociais mudam, após o início dos movimentos feministas e de mulheres, essas relações de poder dentro dos ambientes de trabalho e da família se alteram e essa imagem de homem fica presa no passado. É um movimento reativo. Parece que nós homens estamos tendo grande e longa dificuldade de abdicar de uma sociedade organizada pelos e para os homens. E para piorar, se ainda estamos falando de violência de gênero, de violência contra a mulher, os números continuam alarmantes e crescem. Isso significa que ainda há muitas mudanças a serem realizadas. Incapazes de realizar seus projetos de vida, de hombridade, a culpa pelo fracasso é dirigida ao outro, se torna das pessoas ao redor, como a companheira, pois esses homens, em suas percepções, estão “apenas” tentando ser homens. Cabe dizer e esse, inclusive, é um dos aspectos mais polêmicos da discussão que o trabalho com esses homens tem trazido, que a violência não é algo natural ou exclusivo ao que é chamado hoje de masculinidade tradicional ou hegemônica. Isso não muda o quão desproporcionais são as desigualdades entre homens e mulheres em nossa sociedade, mas traz a atenção da discussão para a responsabilidade – e não culpa – que todos, como agentes sociais, temos com relação à sociedade que desejamos para o futuro e com a história que nos trouxe até aqui. Se não desejamos repetir essa história, precisamos dialogar com eles a partir de seus contextos e ir ao fundo do problema.
Acontece Unimep - O ciúme é fator fundamental ou apenas gatilho para outros vícios comportamentais adquiridos ao longo da vida?
André - Cada caso é singular. Pela experiência com os grupos, o ciúme apareceu como algo acessório, sempre junto de outros fatores, como o sentimento de posse. Eles aparecem quando o homem se vê ameaçado, por quaisquer que sejam as questões envolvidas nessa relação. Surgem justificativas de toda ordem, em contraste com os problemas pessoais desses homens – como estarem desempregados e as parceiras estarem empregadas – mas sempre quando há uma mudança nas relações de poder dentro do relacionamento. No geral, o principal “gatilho” é a incapacidade de aceitar a independência e liberdade das parceiras (sexual, após o término do relacionamento, afetiva ou econômica), ao passo que eles mesmos se sentem dependentes dessas relações. Isso serviu para demonstrar como os homens estão subjugados aos ideais irreais que possuem. Estão sempre alertas, competindo entre si para saber quem é o melhor parceiro sexual, quem teve mais parceiras, quem ganha mais, quem é ou faz isso ou aquilo melhor. Daí o quão frágeis são os alicerces dessas identidades, os ideais que constituem o “ser homem” desses sujeitos, pois são profundamente dependentes dessa confirmação, de que ocupam esse lugar.
Acontece Unimep – Como o projeto e a graduação na Unimep influenciaram em seu aprendizado e como irão refletir na sua carreira?
André - Eu diria que mudaram tudo. A psicologia é uma ciência que trabalha com a subjetividade, ou seja, com a forma pela qual nós damos significado ao que vivemos, como nos tornamos o que somos. Enquanto profissão, seu compromisso é trabalhar com as relações humanas, pois é assim que nossa subjetividade se constrói. Ela é indissociavelmente política. Exige um compromisso pessoal, íntimo, com a humanidade, pois também investiga como é que se faz esse negócio que chamamos de “ser humano”. Por isso tudo, em meu ver, ela exige ao psicólogo que mude, pois, a humanidade muda também. E, espero que a ajude a mudar para melhor, sempre. Isso implica que a gente se revise, que a gente busque terapia, que a gente construa melhores formas de sermos nós mesmos, para melhor dar conta de ajudar o outro a trilhar esse caminho também. Mas, para isso, temos que olhar para o que é injusto, para o que produz sofrimento, desigualdade, para o que impede que as coisas mudem e que as pessoas possam viver suas potencialidades. No caso do projeto, entrei mais profundamente no universo das relações de gênero e das desigualdades históricas dessas relações, que se mantém até hoje. Foi, também, impossível não me inquietar, não me revisar, não procurar construir uma identidade, enquanto homem, de maneira coerente com o que estudo e professo. É um processo e diria que é interminável. Pelo menos até o fim da vida, né? Quanto à carreira, pretendo seguir trabalhando com esse tema tanto academicamente (mestrado e doutorado, quem sabe) e participando da continuidade desse projeto. Só que agora como psicólogo formado e facilitador dos próximos grupos.
Acontece Unimep – Você mencionou que pretende lançar um livro. Qual será a abordagem?
André – Sim, me considero bastante privilegiado por isso. O livro trata justamente desse projeto e acho surreal que editoras topassem publicar um trabalho de iniciação científica, de um aluno recém-saído da graduação. Mas está aí, vai sair, espero, até o meio do ano.
Entrevista e texto: Serjey Martins
Fotos: acervo pessoal André Caes e banco de imagens Unplash/Luis Quintero
Última atualização: 18/02/2020